Verónica
P. Aravena Cortes (UMESP)
A imprensa
e a problemática construção de um mundo comum no
Brasil*
Resumo:
As idéias de Habermas e Hannah Arendt norteiam uma discussão
sobre a construção da esfera pública no Brasil. Para
o filósofo, a esfera pública é uma zona de discurso
tendo em vista o bem comum, para a autora é o lugar do "mundo
comum", do aparecimento e da visibilidade e por conseguinte da política:
um espaço reconhecido de opinião e de ação.
Para visualizarmos a configuração de esfera pública
brasileira, escolhemos a cobertura de dois episódios recentes na
imprensa paulista, nos jornais Folha de S. Paulo e Estado de S.Paulo,
e nacional, nas revistas Veja, Isto É e Época. Analisaremos
as notícias veiculadas sobre o conflito entre árabes e israelenses,
no último mês de abril, e sobre a invasão pelo MST
da fazenda dos filhos do Presidente Fernando Henrique Cardoso em Minas
Gerais em março deste ano.
Palavras-chave:
Esfera pública, imprensa, notícia.
Nas sociedades contemporâneas o indivíduo está exposto
a um fluxo ininterrupto de informações veiculadas pela mídia.
Dentre os veículos, a imprensa se destaca, uma vez que os assuntos
que se tornam manchete, entrarão na roda de discussões nacional.
É sempre pertinente refletir acerca desta instituição
e sobre as conseqüências da omissão e da manipulação
das informações no processo de transformas os fatos em notícia,
pois está em jogo não apenas uma visão de mundo,
mas o próprio mundo que se constrói.
Para articularmos a relação entre mídia e política
inicialmente discutiremos algumas idéias de Habermas e de Hannah
Arendt. Suas considerações teóricas sobre o espaço
público servir-nos-ão de referenciais para problematizarmos
mídia e, mais especificamente, para analisarmos as notícias
veiculadas pela grande imprensa, o que será realizado logo a seguir.
Na comunicação, o pensamento de Habermas ganhou destaque,
mas a nosso ver há certas idéias de Hannah Arendt que mereceriam
mais atenção, sua concepção de mundo comum
e talvez outro conceito que lhe é anterior, sua visão da
política. A socióloga Vera Telles lembra que, no pensamento
da autora, a política não se define exclusivamente por referência
ao Estado, mas antes como uma forma de sociabilidade, ou seja, um espaço
que cria suas próprias regras e seus próprios critérios,
pelos quais os acontecimentos e os constrangimentos da vida em sociedade
podem se fazer visíveis e inteligíveis para os que dela
participam. (1999, 67)
Pensar a política como um espaço de sociabilidade e, como
tal, de discussão e visibilidade poderia nos levar a reapropriarmos
da própria coisa pública. A política foi associada
ao Estado, no entanto esta esfera não é onipotente e muito
menos autônoma, a esse respeito o historiador Claude Lefort observa
que para que uma demanda de direitos ganhe inscrição jurídica,
não é suficiente que "tal ou qual reivindicação
encontre os ouvidos complacentes do Estado, é preciso que ela se
beneficie antes ... do acordo mais ou menos tácito de uma importante
fração da opinião pública, enfim, que ela
se inscreva nisso que chamamos de espaço público" (1991).
Acreditamos que entre nós essa idéia é bastante perceptível
justamente pelo seu avesso: no Brasil existem leis que "não
pegam". Isto decorre de certas leis não encontrarem um substrato
na opinião pública. Outras leis começam a "pegar"
apenas devido ao constrangimento de punições, tal como a
multa: a obrigatoriedade do uso de cinto de segurança é
um exemplo.
Cabe já dizer que para os dois pensadores o espaço público
se transformou, o que trará conseqüências na vida cotidiana
e na própria forma de fazer política, para Habermas, após
a introdução de novas dinâmicas, tais como a publicidade
e, para Hannah Arendt, a própria vida moderna estaria desfazendo
o espaço público.
A política como ação e como discurso: qualificando
o espaço público
Habermas caracteriza a esfera pública como uma zona de discurso,
na qual idéias são conhecidas e debatidas e uma visão
de bem comum pode ser expressa. O autor se remonta ao século XVIII
para situar um período crucial da esfera pública, neste
século, a imprensa se constitui na sua instituição
por excelência, uma vez que tinha o papel de difundir mas também
de reconfigurar as discussões sociais. O princípio básico
da esfera pública seria legitimar a pressão social exercida
sobre o poder do Estado, transcendendo a mesma relação de
força (1984, 233). Teria como meta a transformação
de interesses de indivíduos privados em um interesse público
comum, e, desta forma, universal.
No momento em que a imprensa se comercializa a relação se
transforma, pois se cria um "portão de entrada de interesses
privilegiados na esfera pública". Sua estrutura se altera,
ao invés de opinião pública, aclamação,
o próprio debate ganha a dimensão de espetáculo.
Criam-se consensos, dos quais a população é excluída:
"um público de cidadãos, desintegrado enquanto público
é de tal maneira mediatizado por meios publicitários que,
por um lado, pode ser chamando a legitimar acordos políticos sem
que, por outro lado, ele seja capaz de participar de decisões efetivas
ou até mesmo de participar." (1984, 258)
Na nossa memória ainda está fresco o recente apelo à
participação da população no momento de crise
de energia em 2001 para que demonstrasse sua cidadania e economizasse
energia; em 2002, a recompensa veio na forma de um aumento de tarifas
para compensar a projeção de lucros não obtidos pelas
companhias distribuidoras, uma vez que a energia não foi fornecida
devido ao racionamento.
Habermas compara o processo de construção de consensos ou
de "fabricação" da opinião pública
ao utilizado pelos mecanismos de relações públicas.
"Naturalmente, o consenso fabricado não tem a sério
muito em comum com a opinião pública, com a concordância
final após um laborioso processo de recíproca Aufklärung
(esclarecimento), pois o "interesse geral", à base do
qual é que somente seria possível chegar a uma concordância
racional de opiniões em concordância aberta, desapareceu
exatamente à medida que interesses privados a adotaram para si
e a fim de se auto-representarem através da publicidade".
(1984, 228-229)
Hoje vivenciaríamos uma situação paradoxal, o equilíbrio
de interesses continua subordinado à pretensão liberal do
bem comum, sem satisfazê-lo, mas também sem poder escapar
totalmente a ele.
Para Habermas a transformação da esfera pública trouxe
inequívocas perdas. Ao perder a sua base na comunidade, a esfera
pública perdeu sua clara delimitação com relação
à esfera privada, por outro lado, a crescente integração
entre Estado e sociedade, tem promovido a perda da dimensão política
da esfera pública: hoje ocorre um intercâmbio direto de favorecimentos
e indenizações particulares, sem passar pelo processo institucionalizado
da esfera pública política. Nesse sentido evaporou-se sua
transparência e abrangência. (1984, 238)
Por outro lado, tendo como ponto de partida uma reflexão sobre
a barbárie do nazismo, Hannah Arendt constrói um conceito
chave para pensar o papel da mídia nas sociedades contemporâneas,
a noção de um "mundo comum", esta se constitui
em uma dimensão crucial do espaço público. E, para
a autora, o espaço público é o espaço do aparecimento
e da visibilidade - "tudo o que vem a público pode ser visto
e ouvido por todos"- e essa visibilidade pública é
o que constrói a realidade. O espaço público é
construído pela ação e pelo discurso. Ação
significa "dar início a um novo começo", mas esta
necessita um espaço de aparecimento e do testemunho dos outros
para que ganhe significado: o espaço público é o
lugar que preserva a ação do esquecimento. Todas as coisas
não comunicadas e incomunicáveis, que não foram nunca
confiadas a ninguém, deixam de existir, pois "não há
para elas um lugar permanente na realidade". (1991)
A vida pública adquire significado no ser visto e no ser ouvido.
"Ser visto e ouvido por outros é importante pelo fato de que
todos vêem e ouvem de ângulos diferentes" (1991, 67).
A experiência da pluralidade permite transcender a vida pessoal
de cada um, mediante a prática do diálogo, esta permite
a construção de referências cognitivas e valorativas
que por sua vez articulam os homens numa trama possibilitando a criação
de um horizonte comum de interlocução possível.
Vera Telles nos lembra que em Hannah Arendt, as dimensões cognitiva
e valorativa do mundo comum qualificam os "critérios através
dos quais se torna possível discernir o relevante do irrelevante,
o legítimo do ilegítimo, o justo do injusto, assim como
a verdade da mentira, o fato da ficção." (1999, 46)
No pensamento de Hannah Arendt, a narração ganha importância,
uma vez que ela é uma espécie de reificação
através da qual os acontecimentos ao serem partilhados, ganham
significado. Hoje é a mídia que monopoliza esta dimensão
de permanência e durabilidade.
A vida moderna tem trilhado o caminho da dissolução desse
espaço público, esta pode ser observada em três diferentes
registros:
1. a perda de um "mundo comum". Esta significa a perda de um
espaço comum entre os homens, comprometendo a capacidade de discernimento
e compreensão e o julgamento que exigem, enquanto maneira especificamente
humana de se fazer a experiência e a realidade. Nesta dimensão
pode-se concluir que a perda do espaço público significa
a perda dessa relação objetiva com os outros homens e com
isso, a perda mesma de uma noção de realidade.
2. No retraimento para a subjetividade. Significa a privação
de um sistema comum de pertinência a partir do qual, a existência
de cada um pode ser reconhecida como algo dotado de sentido e relevância
para os demais, ou seja, num mundo partilhado de significados. A dissolução
do espaço público conduz à impossibilidade de uma
tradição ser criada ou refundada, e, sem o amparo da palavra
e da memória, o acontecimento se volatiliza num tempo privado de
significação humana.
3. Num registro político, significa a perda de um espaço
reconhecido de ação e opinião.
Hoje vemos a exaltação da própria subjetividade que
tende a fazer dos interesses e sentimentos privados a medida de todas
as coisas e de acordo com Hannah Arendt, o mundo comum acaba quando é
visto somente sob um aspecto e só permite uma única perspectiva.
Neste pensamento, direitos como trabalho, moradia e mesmo a vida não
são o cerne da questão, o problema é ter condições
para reivindicar esses direitos e escapar das contingências da natureza.
O problema tampouco diz respeito à liberdade de pensamento, pois
sem um espaço, isto é, uma comunidade que torne significativas
as opiniões de cada um, essa liberdade é equivalente à
"liberdade de um louco, porque nada do que se pense pode importar
a alguém". (1998, 328-330)
É triste constatar que a história está repleta de
exemplos de grupos que não parecem relevantes e que estes não
cessam de se multiplicar no presente. As comunidades indígenas,
os negros no continente americano durante séculos, os palestinos
nos últimos 50 anos, a maioria dos países da África
e o nosso país vizinho, a Argentina, entre muitos outros que como
Quixotes vagueiam sem ser ouvidos.
Esta é uma medida de democracia. Sociedades democráticas
se caracterizam pela existência de sujeitos com o direito à
palavra e à ação e próprio direito aparece
como sujeito a uma constante reinterpretação. Já
em sociedades totalitárias, o discurso do poder é auto-suficiente,
ele ignora toda palavra que esteja fora de sua órbita.
O mundo comum produzido pela mídia
Como vimos, a mídia, pelo seu poder simbólico, tem uma dupla
dimensão cognitiva e valorativa: nos mostra o mundo, mas não
apenas isto, coloca até o sentido em que este mundo será
visto pelas pessoas, articulando aquilo que será problema no espaço
público. Há inúmeros exemplos recentes: a cobertura
da guerra contra o Afeganistão, na qual a morte de civis foi "encarada
como efeito colateral da luta contra o terror", o golpe de Estado
na Venezuela, um momento em que, coisa rara, a informação
unilateral foi rapidamente desmascarada, quando a força da realidade
surpreendeu o mundo. No cenário nacional também há
destaques: a presença emblemática de notas empilhadas sobre
uma mesa no escândalo da Lunnus que conduziu à desarticulação
da campanha de Roseana Sarney, um discurso da violência que se limita
aos delitos praticados pelos pobres, ou melhor, que situa os delitos praticados
pelos pobres na editoria Polícia e os das elites na Política...
Para debatermos estas idéias e visualizarmos a configuração
de nossa esfera pública, escolhemos a cobertura de dois eventos
pela imprensa paulista, nos jornais Folha de S. Paulo e Estado de S.Paulo,
e no âmbito nacional, representada pelas revistas Veja, Isto É
e Época. Analisaremos as notícias sobre o conflito entre
árabes e israelenses no momento da visita do secretário
de Estado ao local e sobre a invasão da fazenda dos filhos do Presidente
Fernando Henrique Cardoso em Minas Gerais em março deste ano.
O mundo em nossos lares
As informações sobre aquilo que ocorre no mundo são
bastante escassas e pobres na grande imprensa, sendo evidente um alinhamento
com os EUA e com os organismos internacionais do establishment mundial.
Outros países fora do eixo EUA-Europa despontam nos veículos
apenas pelo lado do exótico ou catastrófico. A esse respeito
são eloqüentes as observações do jornalista
José Arbex, a partir de sua experiência como correspondente
internacional na Folha de S.Paulo "a mídia nacional (...)
adotou uma linha colonizada e provinciana, limitada a refletir a percepção
da mídia americana". (2001, 190)
O conflito entre árabes e palestinos só ganhou de fato espaço
na mídia por uma via tortuosa. Após o atentado do dia 11
de setembro de 2001, o mundo árabe ganha status de área
estratégica para o governo Bush. Naquele momento, o governo norte-americano
passou a necessitar o apoio destas nações para sua cruzada
contra o "terrorismo". O eixo do mal estava claramente delineado:
Afeganistão, Iraque, Sudão... Vale lembrar que as nações
do mundo são conclamadas a participar, pois a política internacional
entra na fase do lema de faroeste: "quem não está conosco
está contra nós". Mas eis que a questão palestina
salta como um espinho atravessado na garganta no mundo árabe.
A mídia brasileira desde o início da nova escalada de violência
após a provocação do então líder de
extrema-direita Ariel Sharon na esplanada das mesquitas em Jerusalém,
em outubro de 2000, repetia a fórmula "novo atentado terrorista
em Israel" ou "homem-bomba faz tantos mortos". Mas em abril
deste ano, quando o governo Bush decide se envolver no conflito, o assunto
ganha destaque quase diário e merece uma edição especial
na revista VEJA.
Hoje temos uma imprensa francamente favorável a Yasser Arafat,
até mitificando o presidente da Autoridade Palestina. O vemos como
único interlocutor legítimo para o ocidente, mas Sharon
o isolou em sua residência em Ramallah em condições
precárias, Arafat ameaça morrer como mártir. A mesma
imprensa está contrária a Sharon, caracterizado como provocador
e belicista, hoje, o primeiro ministro provoca genocídios contemporâneos,
dificulta a vistoria de organizações internacionais e não
"obedece" seu padrinho político, os EUA, que lhe pedem
um cessar-fogo .
É interessante observar algumas manchetes que nas primeiras páginas
dos jornais:
Estado:
Atentado mata 15 e Israel amplia ofensiva (01.04)
Israel revista casa por casa e prende 700 em Ramallah (02.04)
Bush pede a Israel que saia das cidades palestinas (05.04)
Sharom aos EUA: parem de pressionar Israel (11.04)
Folha:
Israel ataca e invade QG de Arafat (30.03)
ONU exige que Israel saia de cidades palestinas (31.03)
Terrorista suicida mata 14 em Israel (01.04)
Israel invade 4 cidades e prende 700 (02.04)
Israel sitia 200 palestinos na Basílica de Belém (04.04)
O número 1746 de 10 de abril deste ano da Revista Veja apresenta
o tema A guerra no oriente médio e sua manchete de capa enuncia:
A MARCHA DA INSENSATEZ. Em 23 páginas propõe-se a desvendar
os meandros do conflito. Vêem-se inúmeros mapas, gráficos
e listagens, no entanto está ausente a própria contextualização
dos fatos.
A matéria destinada a pensar a visão israelense do conflito
se concentrou na figura de seu primeiro ministro, ganhando a manchete
"A Fúria Suicida" e iniciou o texto com a afirmação
"Ariel Sharon está feliz da vida", um pouco mais adiante
prossegue "está fazendo o que sempre quis fazer: implodir
todas as possibilidades de um acordo de paz que, para merecer esse título
precisa permitir a criação de um Estado palestino viável".
Supostamente para entender o lado palestino foi elaborada uma matéria
que se intitula "Os suicidas furiosos", nela vemos informações
sobre os quatro grupos "radicais" que lançam mão
do terrorismo, pois não apenas querem conquistar um território
palestino, mas também desejam "a destruição
de Israel e a formação de um Estado islâmico, nos
moldes que existem no mundo árabe". Destacam-se as organizações
"terroristas", pouco se fala da própria população.
Trabalha-se com a seguinte equação: palestinos-fanáticos-suicidas.
É significativo que o momento de inflexão do enfoque dos
jornais ocorre quando o governo norte-americano "endurece com Sharon"
e anuncia o envio à região do Secretário de Estado,
Colin Powell. Lê-se no Estado: "Israel deve parar de humilhar
os palestinos, diz Bush" (05.04). A partir de então, a cobertura
passa a mostrar uma luta desigual e dar voz àqueles que falam em
genocídio, como o escritor português Saramago. As fotos mostram
tanques e soldados bem armados e protegidos, por um lado, e pessoas indefesas,
com a dor estampada no rosto, cercadas de ruínas, de outro.
Arafat, outrora caracterizado como irascível e responsabilizado
por ataques de "terroristas suicidas", em 2000 foi responsabilizado
de negar-se a colaborar com o processo de paz ao não aceitar o
acordo oferecido pelo presidente Clinton e o então primeiro-ministro
israelense Ehud Barak, durante as negociações de Camp David.
Hoje sabemos que Barak, então pintado como um democrata, multiplicou
o número de assentamentos nos territórios palestinos e que
jamais fez uma oferta por escrito para resolver o problema dos assentamentos
israelenses.
É interessante notar que o conflito ganha visibilidade no momento
em que as preocupações do país hegemônico se
deslocam para o Oriente e que embora os árabes e islâmicos
ainda sejam associados a fanáticos terroristas suicidas, hoje,
o massacre de palestinos em Jenin faz parte das experiências dos
habitantes deste mundo e a causa palestina já participa de nosso
mundo comum.
O Brasil na imprensa: o conflito Agrário
A presença da questão agrária na imprensa brasileira
nos permite visualizar as dimensões cognitiva e valorativa presentes
no conceito "mundo comum" de Hannah Arendt. O tema merece análises
minuciosas, mas aqui nos limitaremos a um episódio recente, cuja
cobertura foi reveladora.
No domingo 24 de março deste ano, o Brasil acordou com a notícia
da "invasão" da fazenda dos filhos do Presidente em Buritis,
Minas Gerais, ocupação largamente anunciada, como pressão
para obtenção de uma audiência com o governo. A ação
durou 22 horas, a saída dos militantes foi negociada por ouvidores
agrários que foram traídos pelo governo federal, pois ao
invés de serem recebidos pelo Ministro do Desenvolvimento Agrário,
conforme prometido, foram algemados, humilhados, presos e processados.
Uma imagem abria a cobertura de todos os veículos analisados: a
foto de militantes dos sem-terra muito à vontade na sede da fazenda,
sentados nos sofás, vendo televisão ou falando ao telefone.
No dia 24 de março, o jornal O Estado de S.Paulo registrava no
alto da 1a página, a manchete "Para governo, invasão
da fazenda é terrorismo", um tom belicista acompanhava as
imagens, na legenda da segunda foto se lia "CERCO - governo anunciou
o deslocamento de 300 homens para a região de Buritis", nela
os manifestantes pareciam ameaçadores, dispostos a lutar, um olhar
atento captaria que suas armas eram paus erguidos. Nos dias que se seguiram
o Estado fez uma suíte intitulada "A Invasão"
que durou até o dia 30 de março. Na semana que se segue
à ocupação, o Estado publica três fortes editoriais.
Os títulos evidenciam as idéias do jornal:
O MST copia o PCC (26.03)
O terrorismo previsível do MST (25.03)
Tolerância zero com o MST (29.03)
O Estado reproduziu em suas páginas o discurso das autoridades
governamentais, do presidente, de seus ministros, juristas, da PF, entre
outros. As ações do MST são qualificadas por estes
atores como "terrorismo", "abuso inaceitável",
"cenas de vandalismo", "eleitoreiras", "puro
banditismo", e "preocupantes", uma vez que os "ativistas
conhecem técnicas de guerrilha". O jornal aponta "falhas
de informação" no governo. Veicula-se a versão
oficial sobre a questão da terra: "o governo FHC já
expropriou mais terra do que todos os outros governos". As notícias
primavam pelo lado policial: a enumeração dos delitos, um
levantamento dos antecedentes criminais dos envolvidos etc. A única
voz dissonante foi a do presidente do Supremo Tribunal Federal, Marco
Aurélio de Melo, que "condena a ação da polícia",
de sua fala se destaca: "Acho que a PF não chegou à
violência física, mas a uma humilhação terrível"
(26.03).
Nesse jornal, o discurso de líderes do MST está quase ausente,
concede-se espaço apenas para José Rainha que surge como
mentor da ação "José Rainha falou aos companheiros
que causaria grande repercussão" (25.03) e no dia 27 de março,
no interior do caderno de política vemos a manchete, "Rainha
some da fazenda ao saber de possível prisão", a matéria
ocupa quatro colunas até o pé da página, pelas fotos
"somos informados" que "invasores destroem parte da plantação
de soja da fazenda Santa Maria para abrir uma clareira (...) e improvisar
um campo para jogar futebol".
A cobertura do evento pela Folha dura até o dia 29 de março,
no entanto o tema paulatinamente vai perdendo destaque. Nos dois primeiros
dias, observa-se uma manchete no alto da 1a página, depois cai
de posição, no dia 28 desaparece da 1a página. No
dia 25 de março, o jornal descreve a humilhação dos
militantes, passo a passo, são quatro fotos que recebem as seguintes
legendas: a triagem, a revista, a voz de prisão, os 16 presos.
Embora exista o predomínio das falas governamentais, a cobertura
procura ser mais pluralista, apresenta a visão do candidato do
PT à presidência da República, da Pastoral da Terra,
da advogada dos Sem-terra, do líder do movimento no Distrito Federal,
entre outros. Durante a semana são publicados dois editoriais,
"Estúpida invasão" (26.03) e "As repostas
do PT" (28.03)
Uma semana após o ocorrido, as revistas publicaram matérias
longas (com 6 páginas). A Veja sentenciou "Os sem-limite atacam
de novo" e no alto da matéria destacou, de um lado, as palavras
do ministro da Justiça, Aloysio Nunes Ferreira "Evidente que
é um ato político-eleitoral. O MST é correia de transmissão
do PT. É por essas e outras que o PT não vai ganhar a eleição
para a Presidência da República." Do outro lado estavam
as palavras e a foto de Lula "Eu fiquei me perguntando a quem interessava
aquela ação. Ao MST não interessava. Ao PT ou à
CUT, não interessa. Então, a quem interessa?". Esta
abertura já mostrava a polarização da reportagem.
Na revista Época encontramos a manchete "O banquete dos Mendigos",
o texto indica que "Líderes do MST produzem cenas de banditismo
enquanto miseráveis se esbaldam na fazenda de Fernando Henrique".
A matéria foi articulada em torno a uma dualidade na implementação
da ação: líderes que conduziram "um ato de barbárie
política e uma demonstração de selvageria sindical"
e uma massa de manobra. Um quadro destaca a "Orgia do MST. O tamanho
do estrago promovido pelos invasores". A matéria estabelece
um "perfil" dos "invasores" e apresenta seu comportamento
na fazenda, as "230 pessoas recrutadas para figurar na operação
vagavam pela casa como se estivessem numa Disneylândia do poder
(...) viu-se por ali uma mistura de cenas de encantamento com outras de
vandalismo de baixo nível, que agride, incomoda e provoca mal-estar".
A manchete da IstoÉ destacou "Invasão. João
Pedro Stédile, líder do MST, sobre cenas destas páginas:
"Foi uma cagada". A revista foi a única a publicar uma
foto e uma entrevista com o líder, o foco da reportagem foram as
repercussões da ação para a campanha do PT e o grau
de vinculação do movimento ao partido. Do movimento, além
de Stédile, José Rainha, do qual se publicou sua polêmica
declaração sobre o PCC "o propósito da ação
do PCC é errado, mas a tática é um instrumento impecável.
Devia ser seguida pelos movimentos de massa".
Em todos os veículos encontramos associados ao MST verbos como
invadir, ameaçar, destruir, improvisar. Alguns como o Estado insistiram
na linha do "terrorismo" ou do "banditismo", outros
apresentaram um acento moral, o banquete dos pobres causa "mal-estar",
eles não têm paladar para aproveitar iguarias. Cabe destacar
que o termo "terrorismo" entrou em nosso universo semântico
após os atentados de setembro de 2001, como sinônimo de barbárie
e mal, outrora se utilizaria a expressão "comunista".
Em nenhum momento os veículos questionaram o Estado de direito
ou o direito à propriedade, ou mesmo as terras griladas ou a concentração
da terra no Brasil, o campo ainda expulsa trabalhadores e a reforma agrária
conduzida pelo ex-ministro Raul Jungmann não foi suficiente para
reverter este problema.
Considerações finais
Acreditamos que mais do que Habermas é Hannah Arendt que nos fornece
munição para pensar a nossa imprensa. Hoje é muito
claro que certos eventos passam a ter "existência" para
nós à medida que são veiculados pela mídia,
como é o caso do conflito entre palestinos e israelenses. Por outro
lado, ao contrário do que pregoam os manuais de redação,
os acontecimentos são apresentados numa dimensão valorativa,
a sucinta análise da cobertura da ocupação da fazenda
de familiares do Presidente pôde comprová-lo.
No Brasil, é um eufemismo afirmar que o espaço público
está se dissolvendo, o melhor seria dizer que ele nunca existiu.
Há uma grande parcela da população que não
parece relevante, cujas demandas não parecem significativas para
a nação. Nossa mídia não se posiciona como
um espaço de debate, mas exclui perspectivas e ações
do cenário, em muitos casos, limita-se a reproduzir a visão
governamental do mundo. Há momentos em que a construção
da informação conhece limites, quando os fatos por sua força
acabam se impondo como notícia. Se a questão é demasiado
pungente, como a questão agrária, o que vemos? Desqualificação
dos adversários, no caso, o grupo é associado ao terrorismo
e ao banditismo e a análise de suas ações adquire
um enfoque moralista. Pobre bom é aquele que conhece o seu lugar.
Pobre bom não reclama, faz parte da paisagem. No Brasil, os miseráveis
não têm direito à palavra e menos ainda à ação,
suas ações chocam, o que nos leva a constatar que estão
fora do mundo comum.
Para José Arbex o "maior problema, para o pensamento crítico,
é tornar visível não apenas o oculto, censurado ou
ausente como texto ou imagem, mas o que as tecnologias da informação
tornam aparentemente visível por um processo de exposição
extrema que, fingindo tudo mostrar, de fato nada revela. A "engenharia
do consenso" opera com armas muito mais sutis e eficazes do que a
censura bruta: sua matéria-prima são nossos próprios
preconceitos e convicções, assim como nosso temor de enfrentar
a instabilidade em um mundo cada vez mais complexo". (2000, 205)
Discutir a imprensa é crucial, pois este consenso fabricado, esta
visão unilateral do mundo, centrada na subjetividade de uns poucos
não tem nada a ver com uma base democrática, antes revela
uma democracia formal numa sociedade totalitária.
BIBLIOGRAFIA
ARBEX, José. Showrnalismo. São Paulo, Casa Amarela, 2001.
ARENDT, Hannah. A Condição Humana. São Paulo, Edusp,
1991.
----- Origens do Totalitarismo. São Paulo, Companhia das Letras,
1998.
HABERMAS, J. Mudança estrutural da esfera pública. Rio de
Janeiro, Tempo Brasileiro, 1984.
LEFOR, Claude. Pensando o político: ensaios sobre democracia, revolução
e liberdade. Paz e Terra, 1991.
TELLES, Vera. Direitos sociais. Afinal do que se trata? Belo Horizonte,
Editora UFMG, 1999.
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