Héris
Arnt (UERJ)
Do jornal impresso
ao digital: novas funções comunicacionais
Resumo
Perspectivas do jornalismo impresso e do jornalismo digital. As novas
tecnologias como extensão da escrita. O surgimento da mídia
digital reorganiza os mecanismos comunicacionais e favorece novas articulações
sociais. Quando se fala de novas tecnologias, fala-se em novas interações
entre informação e cultura. O advento do jornalismo digital
redefine funções do jornal impresso que tende a se afirmar
como o espaço da reflexão, da contextualização
e do aprofundamento dos acontecimentos da sociedade. A facilidade de acesso
às edições recentes e antigas digitalizadas confere
aos jornais a função de avaliação e validação
dos eventos sociais, reafirmando exigências de ordem éticas.
Com o aparecimento e o aumento gradativo da influência de novos
meios de comunicação, ao longo do século XX, primeiro
pelo rádio, depois pela televisão e na última década,
pela tecnologia digital, o jornal foi perdendo o lugar de fonte exclusiva
de informação. Se o jornal não se adaptou totalmente
à concorrência dos meios audiovisuais - este é o pensamento
de J. M. Charon - a apropriação dos novos meios tecnológicos,
com fins de comunicação, foi liderada pelos órgãos
de imprensa.
No primeiro momento, as novas tecnologias serviram tão somente
para modernizar o processo industrial e dinamizar as redações
(pela substituição de velhas máquinas de escrever
por computadores), numa segunda etapa, a tecnologia vai facilitar a comunicação
interna, entre os diversos setores do jornal. Quando os jornais começaram
a fazer edições online não sabiam para onde iam,
nem por que o faziam, mas tinham a intuição de que se não
fizessem acabariam por desaparecer. Hoje, pode-se falar de um jornalismo
digital, que amplia, redobra, multiplica o potencial do jornalismo impresso.
A análise do impacto da tecnologia sobre as formas tradicionais
da escrita, implica o vastíssimo campo do jornalismo e da literatura.
O acesso a obras, informações e produções
culturais, de todos os tempos, é a grande inovação
na área da comunicação. Esta função
muda a relação com a leitura, com a informação,
com a história.
A passagem, dos computadores, de máquinas de operações
lógicas para a função de edição de
texto, marca uma nova etapa de aperfeiçoamento da escrita - do
manuscrito ao impresso, chegando ao eletrônico. No atual estágio
de desenvolvimento da informática e da Internet sua principal característica
aparece como sendo uma extensão da escrita. A escrita nada mais
é do que um código que transcreve os sons produzidos pelo
sistema vocal humano, nas línguas fonéticas, e idéias
nos ideogramas das línguas orientais. A informática percorreu
um longo caminho, até adquirir a função de escrita.
Os programas de edição de texto representaram, na verdade,
um salto qualitativo da informática e os estudos da lingüística
foram fundamentais no aperfeiçoamento da linguagem dos computadores.
Pode-se dizer, e assumimos a ousadia da afirmação, que a
informática só poderia ter sido viabilizada numa cultura
de código da escrita fonética. Os milhões de livros
que se acumulam nas bibliotecas do Ocidente, nada mais são do que
a combinação ad infinitum das 26 letras do alfabeto. A tradução
do pensamento na forma da escrita alfabética é o grande
paradigma do Ocidente. Todas as línguas ocidentais são redutíveis
a um conjunto combinatório de 26 letras.
Entre 1960 e 1985 o progresso da informática foi prodigioso, permitindo
o aumento da capacidade de armazenamento de informação e
de "inteligência" dos computadores. Os avanços
da telemática - a combinação da informática
com as telecomunicações -, entre os anos 1990 e 2000, permitiram
o uso dos computadores no campo da comunicação. É
a partir desse momento que começa a nossa intervenção,
quando o computador assume uma nova função - como mídia,
quer dizer instrumento de mediação dos processos comunicacionais.
A partir de então, começa a se configurar uma nova linguagem
e novas articulações entre informação e conteúdos
sócio-culturais.
É importante refazer esse percurso da criação dessa
escrita digital, para se estabelecer uma aproximação com
as outras formas de escritura e, sobretudo, afirmar uma das funções
primordiais da informática, uma nova etapa da história da
representação escrita do pensamento. Essa questão,
do nosso ponto de vista, modifica a leitura que se possa fazer sobre o
impacto da informática na sociedade, inserindo seu processo dentro
de uma perspectiva histórica mais vasta, fruto das condições
sócio-culturais articuladas às necessidades comunicacionais
e menos pautada na inovação tecnológica.
Até 1975, basicamente, os computadores só faziam cálculos
científicos e aritméticos. O tratamento de texto era bastante
precário. A partir dessa época começam a se aperfeiçoar
os programas de edição de texto, com a transcrição
dos caracteres do alfabeto, dos sinais gráficos e, finalmente,
dos diagramas.
A partir de 1980, cinco anos depois do aparecimento do microcomputador,
são aprimorados os programas de tratamento de texto. Em 1946, o
primeiro sistema (Eniac) operava com os dez algarismos do sistema decimal;
em 1984, a Xerox consegue operacionalizar um sistema capaz de representar
mais de 16 milhões de caracteres tipográficos ou ideográficos
diferentes, ou seja, a quase totalidade das modalidades de escritas e
suas variáveis inventadas ao longo da história humana. A
partir de 1987, a escrita manuscrita e a língua falada começam
a receber tratamento digital.
As línguas consoantes, como o árabe, tiveram grande dificuldade
para serem informatizadas. Em 1962, começaram as primeiras tentativas
de transcrição digital em árabe; em 1982, vinte e
um países adotaram a primeira norma unificada do árabe,
que comportava 86 caracteres. Os caracteres ideográficos foram
muito mais difíceis de transcrever em linguagem digital. Cada ideograma
tem uma representação figurativa, desenhada. Os sentidos
e emprego desses traçados são codificados por regras estritas
de caligrafia, que datam da fundação dessas escritas. Entre
as três maiores famílias de línguas orientais, o japonês,
o coreano e o chinês existem 60 mil caracteres ideográficos.
Com o auxílio da informática foi possível reduzir
todos os ideogramas a 200 traçados fundamentais. Os programas geradores
de caracteres (editor de texto) recompõem esses pequenos traçados,
até formarem um ideograma. Um imenso esforço foi feito,
desde 1960, a fim de ultrapassar essas dificuldades. Em 1978, o Japão
elaborou sua primeira norma nacional de transcrição do japonês.
Essa descrição da escrita digital tem por objetivo chamar
a atenção para a informática enquanto modalidade
e concepção de escrita. Vuillemin enfatiza essa questão,
dizendo que o uso generalizado dos computadores nos faz esquecer este
aspecto da linguagem informática, que fica dissimulada "no
segredo do funcionamento dos computadores" (1990, p. 68). Para o
autor, a informática conseguiu penetrar nas últimas quatro
décadas em quase todas as formas concebíveis de escrita,
a ponto de se tornar, ela mesma, um verdadeiro sistema de escrita que
ninguém ainda definiu verdadeiramente a originalidade" (ibidem).
Mesmo os avanços da interface gráfica - a chamada função
de desktop que é a organização visual da informação,
baseada nas janelas e no mouse - não retiram da informática
a sua função precípua de forma de escrita.
A literatura e a lingüística estiveram em vários momentos
associadas aos estudos avançados na área da informática,
praticamente desde sua sistematização, no início
dos anos de 1950.
Tanto a Inglaterra, como a França e os Estados Unidos, desde os
anos 60 vêm digitalizando suas principais obras literárias
em centros de pesquisa avançados. Para Vuillemin, são abundantes
as novas idéias nessa área, mas "reina a maior desordem"
(idem: 85), com uma variedade infinita de métodos e sistemas de
indexação.
Os bancos de dados com fins de indexação de livros, os sistemas
de bibliotecas e os programas de estudos literários, estão
à frente da tecnologia de tratamento da informação.
Entre os anos de 1960 e 1980 tivemos um longo período de gestação
e aperfeiçoamento da linguagem e dos sistemas de informação,
em que se multiplicaram índices de obras e autores. A finalidade
não era absolutamente de ordem literária, mas reunir o máximo
de material possível sobre as línguas, com o objetivo de
estabelecer programas de tratamento de informação com base
em cadeias de caracteres. Foi assim que as principais obras dos grandes
escritores, como Homero, Virgílio, Dante e Goethe foram digitalizadas.
"O propósito era reunir os materiais necessários para
a realização de uma empreitada informática e lingüística
de outra natureza. A publicação dos índices literários
não era senão um subproduto". (Vuillemin, 1990: 89)
No momento atual, o uso da rede caracteriza-se, sobretudo, pelo acesso
às produções culturais. Se num primeiro momento o
fenômeno abrangia somente a produção escrita, hoje
atinge as outras criações artísticas. O acesso facilitado
ao patrimônio literário da humanidade é o grande evento
da informática, enquanto extensão da escrita. O exemplo
da Biblioteca Nacional francesa é modelar: através do site
Gallica, pode-se acessar gratuitamente qualquer obra antiga, entre os
milhões de livros disponibilizados.
Começamos essa apresentação com as questões
conceituais sobre a escrita digital, examinaremos, a partir de agora,
a influência da informática sobre o jornalismo e as características
do jornalismo online, suas novas funções comunicativas
A tecnologia digital torna-se, nesta última etapa de desenvolvimento
técnico, uma mídia. Para o sociólogo Jean-Marie Charon,
sempre que surge uma nova mídia ocorre, no primeiro momento, um
mimetismo com os meios já existentes, até que ela encontre
a sua própria linguagem, ao mesmo tempo ocorre uma reacomodação
das mídias mais antigas. A tendência da mídia digital,
até o momento, é a reprodução da especialização
dos meios impressos e eletrônicos e a complementaridade entre as
mídias tradicionais e suas versões online. "No momento,
mesmo entre os editores norte-americanos, que são os mais adiantados
nesta área, continua-se praticando uma forma editorial clássica
que reproduz o que já existe." (Sciences Humaines, p: 21).
Para o autor, não se configura, ainda, uma nova linguagem jornalística
no meio digital. Uma nova linguagem exigiria um novo profissional polivalente
que dominasse ao mesmo tempo o escrito o audiovisual e a edição/diagramação.
Não é isto que tem ocorrido. No entanto novos formatos estão
se desenhando: "Estamos na fase de maturação editorial,
ao correr da qual se delinearão novas fronteiras." (ibidem.)
O sistema digital de informação, colocado em funcionamento
através da Internet, deve ser analisado em sua dupla perspectiva:
como fonte primária de informação - condição
de acessibilidade aos dados - e como sistema de ordenação
e transmissão de notícias. Segundo o pesquisador na área
do jornalismo digital, J.M. Charon, a tendência, nos diversos países
tem sido a integração das redações do jornal
impresso e online.
Os jornais online nascem, de maneira incipiente, desde o primeiro momento
da Internet. Começam com algumas poucas notícias , depois
com as versões integrais dos jornais e, finalmente, com a disponibilização
das edições antigas dos jornais impressos. Só recentemente,
com os sistemas avançados de bancos de dados aliados ao aperfeiçoamento
dos sistemas de busca e indexação, os jornais viabilizaram
a pesquisa temática, nas edições antigas. Em 1997,
acontece uma verdadeira explosão do jornalismo online, com os grandes
jornais mundiais criando versões digitais mas, também, com
o aparecimento de jornais independentes, de opinião. Neste momento,
intensifica-se a tendência de portais e provedores se especializarem
em notícias. A efervescência do jornalismo na Internet, comprova
a apropriação do meio com a finalidade de informação,
apontando para a necessidade social da comunicação. Hoje,
proliferam as criações na área do telejornalismo
online.
Os jornais essencialmente digitais desenvolvem características
próprias, utilizando todo o potencial do novo meio. Em relação
às notícias internacionais, eles vêm competindo com
os meios audiovisuais quanto à velocidade em noticiar. As notícias
fornecidas por alguns sites ligados a portais são interessantes,
não só pela possibilidade de atualização dos
acontecimentos de grande repercussão de forma ágil, mas
pelo uso de recursos de multimídia.
As versões digitais dos jornais impressos vêm se adaptando
ao novo meio. A apuração de notícias - com a valorização
dos fatos locais - , o tratamento jornalístico e a análise
crítica têm sido o diferencial favorável aos jornais
de origem impressa. Apesar da facilidade que a Internet trouxe para a
apuração e investigação de notícias,
não estão excluídos os métodos "clássicos,
que consistem em encontrar os indivíduos ou órgãos,
e verificar diretamente as informações que procuram"
(Charon: 2001: 21). As informações colhidas diretamente
na rede colocam o problema da confirmação e validação
das notícias. A questão de credibilidade das informações
é um problema maior para o jornalismo sob a égide do jornalismo
digital. "É bem verdade que até o momento esse problema
está longe de estar regulado; eu diria que esse é o principal
ponto de interrogação sobre os novos usos, ligado à
deontologia da profissão."(ibidem)
Os jornais digitais dos grandes órgãos de imprensa, tendo
ou não redação separada e um formato próprio,
guardam as características do jornalismo impresso. Novos formatos
têm surgido, exclusivamente no suporte digital, essa tendência
tende a se afirmar para o jornalismo de opinião, algumas áreas
especializadas e nas formas híbridas de jornais com imagem em movimento
e textos. Os últimos avanços da informática abrem
um novo campo para o telejornalismo online.
Se ainda é precipitado falar de uma nova linguagem informativa,
alguns aspectos introduzidos pela rede, configuram novas funções
- uma delas é o caráter não perecível dos
produtos da informação - quer dizer seu potencial de arquivo
e de acesso à história recente, da sociedade. Tudo, uma
vez colocado na rede, fica disponibilizado. Uma prova evidente desta função
é o fato dos únicos serviços cobrados com uma certa
eficiência, são os serviços de busca em edições
antigas dos jornais. O acesso aos textos das edições recentes
e antigas dos jornais, cria novas conexões de comunicação,
cujo impacto ainda não é possível avaliar.
Os maiores jornais do mundo estão digitalizando seu acervo. O acesso
à história factual das sociedades do passado, guardadas
nos milhares de páginas antigas dos jornais, só foi possível
pela apropriação do novo meio pela mídia escrita,
criando-se uma verdadeira sinergia entre o jornal impresso e o jornal
digital.
Essa função de documentação e pesquisa aproxima
de forma efetiva, pela primeira vez, a informação e a ciência
da informação - e sua função de sistema e
métodos de armazenamento e de recuperação da informação.
Às funções de informar, divertir e educar acrescenta-se
mais uma ao jornalismo, a de documentação e de preservação
da memória dos relatos cotidianos e "insignificantes"
da sociedade. Essa nova função tende a interferir na concepção
do jornal impresso. O caráter de perenidade, de preservação
dos relatos sobre os acontecimentos e eventos, o papel de verdadeira memória
viva da sociedade, levará o jornal, cada vez mais, a assumir uma
postura ética diante da informação.
A tecnologia digital criou novos parâmetros de comunicação
e informação, e esses parâmetros já podem ser
avaliados. Com o instrumental digital, criou-se um tipo de informação
cuja característica é a complementaridade com o impresso.
A observação de W. Dizard vai neste sentido: "Os puristas
podem argumentar que a nova mídia é substancialmente diferente
da velha. (...) A verdade, no entanto, é que a linha divisória
entre as duas está sendo diluída todos os dias" (2000:
23).
No atual estágio da tecnologia, todas as mídias e os suportes
de escrita perduram e subsistem e a sociedade vem se apropriando, de forma
inventiva, da mídia digital, com o objetivo precípuo de
se comunicar, se informar e se divertir. O número de revistas especializadas
em informática e Internet é a própria evidência
desse dinamismo, que mostra a complementaridade entre mídia digital
e impressa. Esse fato não reflete somente a impossibilidade, da
rede, em gerar um sistema autógeno de informação,
mas evidencia o intrincado fluxo de informação na sociedade
contemporânea, o que reafirma, na prática, a articulação
complexa e indissociável entre técnica-cultura e os mecanismos
sociais.
O efeito das novas tecnologias vem acelerando a tendência à
especialização entre as diferentes mídias e a fragmentação
infinita de títulos, atendendo às demandas de setores, segmentos
e grupos. Mas o jornal impresso conserva a sua formatação
original em "mosaico", abrigando a pluralidade de assuntos,
temas, enfoques que refletem os diversos segmentos em que se fragmenta
a sociedade. Os outros produtos impressos, ao contrário, passam
por um processo de segmentação em relação
direta com a tendência da sociedade contemporânea a se organizar
por grupos de afinidades - os novos meios digitais deram um imenso impulso
a esse aspecto. A "sociedade em redes" não é uma
metáfora, o meio tecnológico reproduz e reafirma essa característica.
O extraordinário desenvolvimento das revistas especializadas é
um indício disto: a informação passa a ser de conhecimentos
específicos; o lazer liga-se aos hobbies, cuja natureza é
a especialização, em conseqüência multiplicam-se
os títulos de revistas; a própria literatura perde seu caráter
de construção de identidade e de atribuição
se sentido e tende a ser uma especialização a mais dentro
do imenso leque de assuntos oferecidos para leitura.
Essa tendência indica que o jornal reafirma seu campo de atuação
na sua função de informação, validação
e de reflexão crítica sobre os acontecimentos. Apesar da
velocidade da informação transmitida pelo rádio e
pela televisão, a imprensa escrita continuou a exercer sua função
informativa, afirmando-se como mídia reflexiva. A reflexão,
a que me refiro, não é necessariamente a expressa pelo jornal,
mas elaborada pelo próprio leitor a partir das múltiplas
abordagens dadas aos fatos. Essa função de permitir a construção
de um sistema próprio de avaliação, escapa às
possibilidades comunicativas do rádio e da televisão - por
maior que seja o esforço do repórter ele não poderá
senão oferecer uma visão fragmentária, elíptica
e seletiva, enquanto acompanha os acontecimentos.
A afirmação do jornal no cotejo com a mídia digital
se faz, justamente, no sentido oposto do que ocorre em relação
à mídia audiovisual. O excesso de informação,
a fragmentação ad infinitum de dados oferecidos pela rede,
impossibilitam a síntese, fragmentam a leitura, colocando em dúvida
a veracidade dos acontecimentos. Com as novas configurações,
decorrentes da entrada das mídias digitais, o jornal impresso se
define por algumas das características que lhe eram implícitas,
mas que só agora se afirmam de maneira positiva: a de seleção
dos acontecimentos e de escolha dos conhecimentos científicos,
teóricos e culturais a serem reportados.
O recorte dos eventos cotidianos e a seleção dos conteúdos
dos conhecimentos oferecidos pelo jornalismo impresso estão intrinsecamente
ligados às necessidades sociais de informação. Esse
aspecto da seleção de notícias sempre foi considerado
pelos críticos da comunicação como um dos aspectos
negativos da imprensa - o jornal sendo acusado de decidir aleatoriamente
o que é noticiável, de parcialidade na escolha dos acontecimentos
e de unilateralidade nas versões dos fatos. Entre eles o historiador
Darnton, que no livro O beijo de Lamourette, discute essa questão.
No capítulo "Jornalismo: toda a notícia que couber,
a gente publica", o autor critica os critérios de seleção
de notícias. Baseado em sua experiência de repórter
do The New York Times no começo dos anos de 1960, diz que os jornalistas
escrevem primeiro para o editor, numa tática para conseguirem mais
espaço para suas matérias e prestígio pessoal, depois,
para os colegas em geral e para os jornalistas dos outros órgãos,
e para as fontes, pois eles sabem que os políticos e assessores
lerão a notícia no dia seguinte. "O noticiário
corre em circuitos fechados: é escrito sobre e para as mesmas pessoas,
e às vezes em código privado." (Darnton, p. 83). Contrariando
a simplificação oferecida pelo sociólogo, a função
de seleção aponta para a complexidade da questão
da informação.
Hoje, a seleção da informação torna-se o trunfo
do jornal impresso. Dentre as infinitas possibilidades de acesso à
informação, o jornal é um meio que seleciona (com
as imperfeições inerentes a toda a escolha), oferece várias
versões, analisa os principais acontecimentos - mapeando as nossas
leituras, em meio a esta saturação semiótica em que
submerge cotidianamente o habitante da cidade. O jornal, além das
outras funções, que lhe são implícitas, assume
o importante papel de fazer um recorte possível dos acontecimentos
da sociedade.
Ao lado da função de seleção e de recorte
dos fatos e acontecimentos, aparece uma outra que lhes é correlata,
a representação da fragmentação do social,
em razão da sua própria formatação. O aspecto
fragmentário da sociedade contemporânea, remete a uma questão
chave, que nos parece estar no centro da discussão sobre a necessidade
social da informação e da própria sobrevivência
do jornal impresso: as múltiplas representações dos
diferentes fragmentos da sociedade estampadas nas páginas do jornal
dão uma idéia de coerência das partes. O jornal, composto
por suas editorias, colunas, anúncios, cultura, idéias e
contradições, consegue - ou quase - dar conta da pluralidade
do social. Não existe leitura possível do todo, mas o jornal,
na sua forma de mosaico, passa a idéia de que o todo possa ser
apreendido.
Essas questões apontam para a importância da linha editorial
do jornal. As posições político-sociais assumidas
serão, cada vez mais, determinantes na escolha do jornal - sua
razão de ser em relação aos outros meios de comunicação,
sua sobrevivência. Diante da oferta ilimitada de informação
pela mídia audiovisual e digital, e pela multiplicação
rizomática dos próprios jornais, revistas e impressos especializados,
a grande questão da sociedade da informação está
na possibilidade, ou não, de avaliação e validação
dos fatos. O potencial do jornalismo impresso, na sociedade contemporânea,
cada vez mais, está ligado a sua credibilidade, sua ética
em última instância.
A função ética do jornal confunde-se com a própria
função de informação. A nortear os parâmetros
éticos dos jornais, existe todo um sistema de avaliação,
que nasceu com a própria imprensa, baseado num instrumental de
novas versões dos fatos na edição seguinte, desmentidos,
erratas, correspondência dos leitores, notas da redação.
Estes mecanismos podem ser muito sutis, e aparentemente pouco importantes,
mas são da essência do jornalismo. Esses mecanismos de avaliação,
tão antigos como o jornal, são básicos para a sua
permanência. São características intrínsecas
ao jornalismo, a pluralidade dos enfoques, os mecanismos de validação
das notícias que compõem a necessidade social da informação.
E aqui uma citação de Machado de Assis nos serve de metáfora:
"Confesso que não acreditei na notícia, a princípio;
mas o respeito em que fui educado para com a letra redonda fêz-me
acabar de crer que se não fosse verdade não seria impresso"
(1957:85). Isto para criticar o falso telegrama inventado por Bismark
para empreender uma guerra contra a França, com o objetivo de unificar
os estados alemães em torno de um sentimento nacional. Artimanha,
aliás, que deu certo. O jornal, cada vez mais, vai ter que assumir
uma posição diante da veracidade dos acontecimentos, pluralidade
de posições, assumindo uma postura ética. Em face
da impossibilidade de apreensão da globalidade dos fatos, do excesso
de informação - potencializado ao extremo com a entrada
da mídia digital - só nos resta acreditar na "letra
redonda".
Quanto à função de informação, a Internet
oferece a exposição de todos os acontecimentos ocorridos
no mundo, em tempo real ou no tempo do leitor/navegador. Mas a leitura
particularizada, o olhar através do filtro local - ao mesmo tempo
plural e particular - continua sendo possível somente através
da imprensa. O recorte de realidade oferecido pelos jornais diários;
aleatórios, muitas vezes; unilaterais necessariamente; ideológico,
quase sempre; é o que de melhor se inventou, até hoje, para
transmitir à população a pluralidade de informações
necessárias ao gerenciamento da vida cotidiana. Chegamos aqui ao
ponto chave que queríamos demonstrar, nesse encontro: a comunicação
como um processo em que se articulam técnica, cultura, conhecimentos
abstratos como fundamento da informação.
Os meios tecnológicos digitais representam uma nova etapa do jornalismo,
um novo meio, um novo suporte, mas não uma ruptura na maneira de
criar e comunicar os conteúdos do pensamento. A possibilidade de
acesso aos jornais recentes e antigos, bem como a arquivos primários
de informação, modifica o patamar da comunicação
cuja característica passa a ser a acessibilidade aos conhecimentos
e aponta para o potencial de informação sobre sociedade.
A partir das infinitas possibilidades de cruzamentos entre os textos de
jornais e os textos literários, científicos, documentais
e de conhecimentos abstratos é possível fazer novas conexões,
novas leituras. A mídia digital abre infinitas possibilidades de
recontextualização dos fatos de cultura. Uma nova linguagem,
tecnologia e cultura estão em andamento, capazes de desconstruir
as hipóteses sobre comunicação, exigindo novos ensaios
que dêem conta da complexidade que o objeto inspira.
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