Carlos Alexandre de Carvalho Moreno (UERJ)

A proposta de um jornalismo político-sociológico

Resumo

Na abordagem do tema "Comunicação para a Cidadania", este texto tem como um de seus objetivos ampliar, com o auxílio das ciências sociais, o diagnóstico da precariedade da imprensa contemporânea, no Brasil e no mundo. Além disso, será discutida aqui a pertinência de um jornalismo político-sociológico, como proposta para uma retomada, em termos de ensino e exercício profissional, da responsabilidade social na prestação de serviço de informação. Entende-se que a passagem desse jornalismo predominantemente deficiente que parece existir hoje em dia para notícias e reportagens de qualidade superior supõe não apenas aprendizagem técnica, mas, sobretudo, a existência de profissionais que sejam capazes de exercer a crítica.
Palavras-chave: jornalismo impresso, teoria e ensino.

Introdução

O Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação deste ano tem "Comunicação para a Cidadania" como tema central. Em texto sobre o assunto, o professor Roberto Vieira (UFPA) aponta que a Cidadania "se desenvolve na distribuição da riqueza produzida pela nação de forma mais equânime" (http://www.intercom.org.br/congressos/indexcs.html).
A observação de Vieira pode ser compreendida com maior clareza quando o conceito de Cidadania é apresentado por José Afonso da Silva, professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, como um dos fundamentos do Estado brasileiro:
A cidadania está aqui num sentido mais amplo do que o de titular de direitos políticos. Qualifica os participantes da vida do Estado, o reconhecimento dos indivíduos como pessoa integrada na sociedade estatal. Significa aí, também, que o funcionamento do Estado estará submetido à vontade popular. E aí o termo conexiona-se com o conceito de soberania popular, com os direitos políticos e com o conceito de dignidade da pessoa humana, com os objetivos da educação, como base e meta essencial do regime democrático. (SILVA, 1992; p. 96)
O Código de Ética homologado pela Federação Nacional do Jornalistas (http://www.jornalismoambiental.jor.br/fenaj.htm) aborda, em vários de seus artigos, questões relacionadas ao conceito de Cidadania. O artigo 3º, por exemplo, prevê que a informação divulgada pelos meios de comunicação pública se pautará pela real ocorrência dos fatos e terá por finalidade o interesse social e coletivo. Já o artigo 9º indica que é dever do jornalista: opor-se ao arbítrio, ao autoritarismo e à opressão, bem como defender os princípios expressos na Declaração Universal dos Direitos do Homem; combater e denunciar todas as formas de corrupção, em especial quando exercida com objetivo de controlar a informação; respeitar o direito à privacidade do cidadão. Além disso, o artigo 16º aponta que o jornalista deve pugnar pelo exercício da soberania nacional, em seus aspectos políticos, econômicos e sociais, e pela prevalecência da vontade da maioria da sociedade, respeitados os direitos das minorias.
Contudo, entre o direito e o fato, o código e o exercício, impõe-se a realidade nacional. Como lembra a filósofa Marilena Chaui, "a sociedade brasileira sequer chegou aos princípios liberais da igualdade formal e das liberdades e muito menos aos ideais socialistas da igualdade econômica e social e da liberdade política e de pensamento":
Sociedade sem cidadania, profundamente autoritária, onde as relações sociais são marcadas com o selo da hierarquia entre superiores e inferiores, mandantes e mandados, onde prevalecem as relações de favor e de clientela, onde inexiste a prática política da representação e da participação, a sociedade brasileira sempre teve fascínio pelo populismo como forma da esfera pública da política. O populismo, como se sabe, opera pela relação direta e imediata entre o governante e o "povo", à distância das mediações institucionais, alimentando o imaginário messiânico da salvação e o imaginário feudal da proteção. (CHAUI, 1992; p. 387)
Num contexto social como o descrito acima, apesar das recomendações da Federação Nacional dos Jornalistas (www.fenaj.org.br/), não chega a surpreender, como bem aponta Vieira, que a imprensa, que evidentemente faz parte da sociedade brasileira, não esteja cumprindo com a devida correção seu papel no sentido de promover a Cidadania:
Os meios de comunicação, através de seus instrumentos de coesão das massas, se mantêm vassalos do ethos da elite, de seus costumes, de seu caráter e de sua moral. E que não passa, no seu cerne, do gozo dos prazeres materiais. Enquanto a elite baba no orgasmo de suas frivolidades, milhões de cidadãos sobrevivem com duas colheres de farinha e um ovo cozido por dia. Se tanto! (http://www.intercom.org.br/congressos/indexcs.html)

Para o professor da UFPA, caberia "à mídia desempenhar o seu papel de interface entre os distintos grupos e classes sociais confluindo-os para o ethos social almejado, orientando o cidadão de forma competente, no sentido de entender os seus problemas e de indicar soluções para eles" (http://www.intercom.org.br/congressos/indexcs.html). Seria, prossegue Vieira, "função da mídia evocar os anseios sociais, suas demandas e interesses":
É obrigação dos meios de comunicação, particularmente dos eletrônicos por sua abrangência, desempenhar, exercer o debate público sobre questões cruciais que atravancam o acesso de grande parte da população à educação que prepara não apenas para a vida profissional, mas também e principalmente para o convívio social entre os cidadãos. (http://www.intercom.org.br/congressos/indexcs.html)

Este texto tem justamente como um de seus objetivos ampliar, com o auxílio das ciências sociais, o diagnóstico do mal da imprensa contemporânea, no Brasil e no mundo. Além disso, será discutida aqui a pertinência de um jornalismo político-sociológico, como proposta para uma retomada, em termos de ensino e exercício profissional, da responsabilidade social na prestação de serviço de informação.
Afinal, talvez agora seja o momento de fazer valer aquele que foi definido como um ethos próprio para os jornalistas. Nas palavras de Nelson Traquina, "nomeadamente o de um comunicador desinteressado que não só serve à opinião pública e constitui uma arma imprescindível em democracia contra a tirania insensível ou quaisquer eventuais abusos de poder, mas também que se sente comprometido com a verdade" (TRAQUINA, 2001; p. 27).
Diagnóstico
Zygmunt Bauman denuncia a abordagem reducionista que parece predominar na imprensa internacional. Para o sociólogo, as notícias seriam pautadas e editadas de modo a tratar do problema da pobreza e privação, por exemplo, como se o que estivesse em questão fosse apenas a fome. Graças a tal estratagema a verdadeira escala da pobreza seria omitida, o que levaria a pensar que a tarefa a enfrentar seja "limitada a arranjar comida para os famintos" (BAUMAN, 1999; p. 81).
A própria rotina da comunicação jornalística é em certos casos a principal responsável pelo empobrecimento do texto informativo. Na explicação de Pierre Bourdieu, a visão jornalística tem propriedades típicas. Haveria a tendência a confundir o novo com a revelação ou "a propensão a privilegiar o aspecto mais visível do mundo social, isto é, os indivíduos, seus feitos e, sobretudo, seus malfeitos, em uma perspectiva que é com freqüência a da denúncia e da acusação" (BOURDIEU, 1998; p. 93). Ou seja, é mais fácil noticiar uma novidade sobre a fome, que é dramaticamente visível, do que promover, através de uma reportagem investigativa, a compreensão do problema social em toda a sua complexidade. Daí, nos rotineiros fechamentos das edições jornalísticas, a vigência da lei do menor esforço.
A opção pelo caminho supostamente mais fácil em termos mercadológicos tem feito com que na imprensa o entretenimento seja privilegiado em detrimento da informação real. Um exemplo disso pode ser percebido no grande espaço que as variedades, os relatos sobre o mundo dos ricos e famosos, ocupam nos principais jornais.
Bourdieu argumenta que a tendência do campo jornalístico é precisamente "sacrificar cada vez mais a informação, análise, entrevista aprofundada, discussão de conhecedores ou reportagem em favor do puro divertimento" (Ibidem; p. 95). Para o sociólogo, os jornalistas estariam adotando a política da simplificação demagógica e oferecendo uma representação instantânea e descontinuísta do mundo. (Ibidem; p. 96-100). O efeito da mídia seria demagógico e despolitizante. E o mais grave, segundo o pensador francês, é que tal forma de produzir notícias prejudica justamente os que mais dependem dos meios jornalísticos para formar uma opinião acerca da realidade: os mais desprovidos economicamente e acima de tudo culturalmente. Isso estimularia "uma ação conservadora, de desmobilização dos movimentos críticos" (Ibidem; p. 112). Dessa forma, o jornalismo parece estar realmente na contramão quando o objetivo é promover a Cidadania.
O diagnóstico desfavorável do desempenho da imprensa contemporânea não está limitado aos pensadores estrangeiros. No Brasil, o cientista político Emir Sader, por exemplo, tem sido veemente em sua crítica da omissão dos veículos jornalísticos locais no que diz respeito à orientação do público:
O leitor de jornal encontra o quê? Nos editoriais e nos colunistas, argumentos internacionais. Ele não tem informação, não consegue acompanhar os mecanismos para ter uma cultura política geral e poder rebater. (JORGE, SADER e TAVARES, 2001; p. 50)

A promoção da Cidadania depende fortemente de uma cultura política. E esta, de acordo com Sader, seria hoje, em grande parte, uma cultura internacional. Eis, portanto, o que falta ao leitor brasileiro, na visão do cientista político:
É saber o que se passa em cada lugar do mundo, pelo menos em relação às experiências mais importantes. Não vamos conseguir avançar se não tivermos uma imprensa que faça um acompanhamento. Por exemplo, ao se noticiar "A Coréia do Sul saiu da crise", é preciso explicar como isso aconteceu. A grande imprensa noticia como ela entrou em crise, mas qual foi a modalidade adotada, como a Coréia do Sul chegou a ser o "milagre" que prometeram que o Brasil ia ser? Esse acompanhamento é que dá a verdade dos fatos. Mas só noticiam num momento determinado para dizer: "Acabou o 'milagre' asiático". (Ibidem; p. 53)

A informação é certamente o fundamento da análise e da opinião. E, no campo jornalístico, não se pode dizer que falte orientação técnica adequada. O Manual de redação da Folha de S. Paulo (edição em CD-ROM, de 1995), por exemplo, determina que a análise do noticiário, que dá ao leitor a oportunidade de se aprofundar nos eventos, questões ou tendências, envolve a seguinte série de procedimentos:
a) O jornalista só deve tentar escrever uma análise depois de checar se dispõe de informações suficientes para sustentar suas conclusões;
b) Deve pesquisar a bibliografia ou os arquivos sobre o assunto;
c) Deve entrevistar os envolvidos;
d) Deve contextualizar o assunto;
e) Deve escrever um texto curto e de preferência com uma única linha de raciocínio;
f) Deve expor sua linha de análise logo nos primeiros parágrafos;
g) Deve expor seus argumentos em um crescendo, para tirar proveito da tensão criada pelo texto e facilitar a conclusão para o leitor;
h) Deve trabalhar com rigor técnico para que suas conclusões sejam conseqüências necessárias dos fatos que descreveu;
i) Deve cruzar as suas observações com dois ou mais especialistas no assunto, de preferência com posições divergentes;
j) Deve sempre utilizar números e estatísticas para dar mais credibilidade e objetividade às observações;
l) Deve ressaltar contradições e, para tornar seus argumentos mais claros, utilizar analogias;
m) Para que o texto de análise não fique desinteressante, deve recorrer a declarações inteligentes, famosas ou engraçadas sobre o assunto, além de mencionar casos históricos ou relevantes que guardem semelhanças com o tema abordado;
n) Deve, para que a análise tenha êxito, chegar a uma conclusão original.

Entretanto, a passagem desse jornalismo predominantemente precário que parece existir hoje em dia para notícias e reportagens de qualidade superior supõe não apenas aprendizagem técnica, mas, sobretudo, a existência de profissionais que sejam capazes de exercer a crítica. Nesse sentido, vale lembrar a ressalva de Robert Kurz: jornalismo político não é auto-ajuda capitalista, assim como o jornalismo econômico não pode ser reduzido a guia financeiro (KURZ, 1997; p.18). O exercício responsável da crítica é a característica central do jornalismo político-sociológico que é defendido aqui.
Proposta
Bourdieu afirma que os sociólogos têm algo muito importante a oferecer a jornalistas lúcidos e críticos: "os instrumentos de conhecimento e de compreensão, eventualmente até de ação, que lhes permitam trabalhar com alguma eficácia para controlar as forças econômicas e sociais que pesam sobre eles próprios" (BOURDIEU, 1998; p. 108). Na mentalidade profissional renovada, o jornalismo escrito teria uma posição estratégica, pois haveria nele a possibilidade de trabalhar para difundir armas de defesa e o dever de estar na linha de frente no combate contra a descerebração (Ibidem; p. 113).
Na verdade, o jornalismo defendido aqui pode e deve ser incluído na vertente crítica da cultura política contemporânea. Ele seria, portanto, na linguagem de Bourdieu, uma das forças de resistência à instauração da ordem nova. O jornalismo político-sociológico renovado entraria na "luta propriamente simbólica contra o trabalho incessante dos 'pensadores' neoliberais". Adotando o programa do pensador francês, os jornalistas defenderiam "instituições como direito do trabalho, assistência social, previdência social etc. contra o projeto de condená-las ao arcaísmo de um passado ultrapassado" (Ibidem; p. 146). E, agindo dessa forma, o jornalista, eis um dos argumentos centrais deste texto, não faria nada além de exercer sua responsabilidade profissional. Afinal, num mundo como o contemporâneo, em que globalização rima com exclusão social, não parece haver como oferecer informação real sem adotar um justo inconformismo. E este tem de estar em sintonia com o espírito do tempo, como indica Kurz:
O pensamento inconformista deve ser tão ágil quanto o dinheiro fugidio. O que nos falta, na verdade, é a globalização de uma nova crítica social. (KURZ, 1997; p. 141)

A proposta de um jornalismo político-sociológico renovado pode resultar em estratégias mais eficazes em termos de um exercício profissional responsável. Como lembra Nelson Traquina, "as exigências feitas aos profissionais do campo jornalístico serão cada vez maiores". Por isso, o teórico julga "insustentável negar o papel ativo que os jornalistas exercem na construção da realidade social". Na conclusão deste texto, é gratificante poder recorrer à citação de um especialista em jornalismo como Nelson Traquina, que sintetiza aquilo que, no que diz respeito ao ensino e ao exercício cotidiano, possibilitará o redimensionamento da profissão:
Perante as altas responsabilidades dos jornalistas, é tempo de reconhecer que a preparação dos futuros profissionais do campo jornalístico passa por uma formação universitária que privilegia uma formação sólida nas ciências humanas e sociais, incluindo as ciências da comunicação, e não a aprendizagem técnica, como alguns elementos mais retrógrados da profissão ainda defendem no início do século XXI. (TRAQUINA, 2001; p. 46)
Bibliografia
BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. (145 p.)
BOURDIEU, Pierre. Contrafogos: táticas para enfrentar a invasão neoliberal. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. (151 p.)
CHAUI, Marilena. "Público, privado, despotismo". In: NOVAES, Adauto (org.). Ética. São Paulo: Companhia das Letras, Secretaria Municipal de Cultura, 1992. (p. 345-390)
JORGE, Eduardo, SADER, Emir e TAVARES, Maria da Conceição. Globalização e socialismo. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2001. (70 p.)
KURZ, Robert. Os últimos combates. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997. (394 p.)
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros Editores, 1992. (768 p.)
TRAQUINA, Nelson. "A redescoberta do poder do jornalismo: análise da evolução da pesquisa sobre o conceito de agendamento (agenda-setting)". In: O estudo do jornalismo no século XX. São Leopoldo, RS: Editora Unisinos, 2001. (p. 11-47)